terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A questão do EU em Filosofia e Literatura

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A invenção do EU, como produto da linguagem
E a literatura de Fernando Pessoa


"a origem mental dos meus heterónimos
está na minha tendência orgânica e constante
para a despersonalização e para a simulação.."
(Fernando Pessoa)

Por Ediane Soares

A reviravolta linguistica-filosófica inaugurada pela filosofia contemporânea coloca como papel fundamental da filosofia analisar a linguagem através da qual podemos entender melhor a nossa forma de ver a realidade das nossas experiências, e não como produtora de teorias ou sistemas conceituais.

Sendo assim, resta-nos perguntar como ficam as questões fundamentais na tradição do conhecimento, como por exemplo, o que é o homem? Quem é o homem? Quando e como surge a noção de EU?

Na filosofia contemporânea fala-se de uma emergência antropológica no contexto lingüístico para se fazer uma reflexão sobre tais questões. Tal emergência é visível nas "nvestigações Filosóficas", obra póstuma do chamado segundo Wittgenstein, que marca profundamente a filosofia da linguagem e o pensamento filosófico contemporâneo.

O EU enquanto interioridade e exterioridade

A noção de EU, tradicionalmente, forma-se baseada numa interioridade e mentalismo, como no "EU penso" de Descartes, sendo levado a pontos extremos, tornando-se possível apenas de ser concebido fora da experiência.

O EU como algo intrínseco apenas à noção de si-mesmo, acaba por não situar o sujeito desse ensimesmamento no mundo relacional, o que contraria a idéia de linguagem como algo necessariamente coletiva, já que é pressuposto fundamental para as relações.

Tal atitude provoca sérias limitações para um conhecimento coerente do individuo, no sentido de não ser algo apenas intencional, mas ser dotado de realidade estando inserido na exterioridade e interioridade ao mesmo tempo.

O individuo, simultaneamente, exterior e interior é sujeito criador e manipulador da linguagem, enquanto é também forjado e criado por ela. Dessa maneira, toda realidade apreendida individualmente está relacionada com o mundo externo e a todo tipo de alteridade existente.

Nesse sentido, a noção de EU ultrapassa a questão da identidade, enquanto conceito puramente subjetivo, ou a idéia que o sujeito faz de si mesmo, e dos EU’s exteriores a ele na alteridade, partindo de seu Eu interior. Nesse caso pode-se levantar a questão da possibilidade de o EU ser algo criado pelo próprio individuo dentro do contexto lingüístico coletivo.

O EU deixa de ser uma realidade singular e abre-se para a multiplicidade de possibilidades diversas de ser.

A construção do EU e a má-fé

O ser-no-mundo é um fundamento que emerge no contexto da criação do EU. É o sujeito que diz-se, forjando assim uma identidade, ou múltiplas identidades. Entenda-se por identidade o conjunto de características e idéias comunicadas pelo sujeito no contexto da sociabilidade.

Não podemos cair no erro de dizer que todo EU criado é forjado por meio de uma atitude de má-fé, na perspectiva existencialista, mas apenas que há essa possibilidade, de fato, e que ela está presente de várias formas no campo da vida cotidiana, de maneira especial na arte e na literatura.

A criação do EU na literatura

Na literatura, a noção de EU toma para si um caráter ficcional que, forjado pela linguagem está sujeito a diversas interpretações e apreensões.

Para ilustrar esse processo, podemos tomar como exemplo a literatura do poeta e prosador Fernando Pessoa, que tem sua obra caracterizada pela criação de diversos heterônimos, fazendo uso da primeira pessoa no singular, marcando profundamente o EU como uma invenção de si.

No poema Tabacaria, predominado pelo discurso pessoal, de um EU ensimesmado, que está inserido e relacionado com o espaço e as coisas do exterior e é determinado pela totalidade que ele assimila e toma para si projetando-se para além das limitações da sua experiência individual.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(...)
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
(...)
(Trecho do poema Tabacaria, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa)


Se tomarmos esse poema isolando-o do restante da obra do Pessoa, um colecionador de Eu’s diversos e até mesmo divergentes, poderíamos até entendê-lo como algo amarrado pela própria existência do eu lírico em relação ao mundo e as intersubjetividades possíveis. Porém sabemos que se trata de um "personagem" como todos os outros de vários autores da literatura, até mesmo do próprio poeta em questão.

Conclusão

Podemos concluir que fora da literatura o EU e a noção de si-mesmo precisam ser colocados entre parênteses e constantemente serem avaliados, para que não nos percamos na absolutização do que nos é aparente e não abarcado completamente pela nossa racionalidade. Os indivíduos são totalidades inacabadas, dentro da totalidade de coisas e fatos que compõem o mundo.

O EU é um projeto da linguagem e está paradoxalmente situado antes, durante e depois dela.
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2 comentários:

Fernanda Rodrigues disse...

Chuchu,
dos tempos pra cá. Comecei a me perguntar porque a ediane vive tanto a filosofia. Porque é algo tão essencial? Hum!? Tô começando a entender um pouco. Acho!!! A filosofia instiga e mostra alguns caminhos ou não? E a filosofia com a literatura é muito interessante porque mostra como tanto a literatura tem da filosofia como a filosofia da literatura. É a busca constante do EU humano nas questões humanas ou não!
Pretendo entender mais da filosofia com o livro que tu me deu... E o texto tá muito bom!!! Adoro o pessoa ele é pura filosofia e literatura!!!
Bjosssss

Ígor Andrade disse...

Que maravilha de texto!
Abraço!